Sou um legítimo “baianeiro”. Nascido em Brasília, filho de pai baiano e mãe mineira, fui criado em condições que, sem dúvida, determinaram a minha formação como professor e, especialmente, a minha paixão pela língua portuguesa. Do lado paterno, trago, desde a infância, o gosto pelas histórias que evocam o mar e os seus ilustres personagens: marinheiros, sereias e as gentes de porto. Da parte materna, aprendi a descobrir o mundo como quem se abre para a realeza dos “causos” do sertão de Minas Gerais.
Esse ambiente, permeado pelas imponentes narrativas dos meus pais, construiu um laço importante em nossa casa. Meus irmãos e eu passamos a dar uma atenção especial àquilo que nos era ensinado, sobretudo porque estabelecemos um clima muito favorável à boa interlocução: ouvíamos muito e começamos a aprender a ser ouvidos. Eu, particularmente, já aos 14 anos, comecei a compreender como essas histórias, de repente, passavam a fazer sentido na minha vida pessoal e escolar: tornei-me um apaixonado pela leitura. Amava ler tudo: desde os rótulos das embalagens até grandes clássicos da literatura.
Descobri, um pouco mais tarde, que a facilidade de comunicação, a capacidade de tomar iniciativas, sozinho ou em grupo, a sensibilidade para conhecer o outro e o espírito de liderança eram o principal legado da minha educação familiar. Ter sido um ouvinte assíduo dos meus pais representou para mim a oportunidade de vestir a pele das personagens, entender as diferenças e as semelhanças entre os indivíduos, as suas mais variadas relações com o grupo e a importância da comunicação para a evolução do ser.
Era emocionante reconhecer que, embora apenas alfabetizados, meus pais eram grandes mestres. Contraditoriamente, sentia certa tristeza quando concluía que, com uma formação acadêmica, talvez eles pudessem ter educado muito mais pessoas e conquistado o respeito como educadores em uma concepção mais ampla do que o contexto familiar.
Com esse histórico de família e de vida, mesmo cursando o Científico (atual ensino médio), entendi que a minha realização nos campos pessoal e profissional só seria possível dentro de uma escola e atuando como professor. E, mais uma vez, estava diante de uma situação que me remetia à educação de casa, fundamentalmente relacionada com a língua pelas leituras e audições de histórias. Decidi, então, pela língua portuguesa e, em 1989, aos 18 anos, ingressei no curso de Letras.
Na universidade, o contato com os discursos de professores e teóricos e a relação mais sistemática com a literatura pareciam dialogar com a minha leitura de mundo construída desde a infância. Essa identificação foi determinante para que os novos conhecimentos, sem que anulassem as minhas experiências anteriores, ganhassem sentido na minha vida. Esse encontro de valores também foi fundamental para o bom desenvolvimento da minha formação acadêmica. Além de me proporcionar conhecimento técnico, a graduação foi responsável pela humanização do meu pensamento sobre o fazer pedagógico: passei a reconhecer que não teria sido um bom aluno universitário se a minha trajetória de vida não tivesse sido acolhida naquele momento.
Em 1993, iniciei minha carreira como professor da rede pública com a convicção de que as minhas aulas não poderiam ser meras reproduções de conteúdos sistematizados: elas deveriam dialogar com as experiências de vida e com os interesses dos meus alunos. Acreditava completamente que, sozinho, não seria capaz de promover uma aprendizagem significativa. Era a hora de despertar aquele menino que aprendera a ouvir com as já velhas histórias da infância para buscar no aluno informações essenciais para a preparação das aulas. Apesar de “calouro” na Secretaria, estava clara para mim a importância de um planejamento pedagógico voltado para a realidade na qual estavam inseridos os jovens do curso Técnico em Eletrônica da minha escola no Gama. Qual seria a importância do ensino da língua portuguesa para eles? Como promover momentos significativos de aprendizagem para as minhas turmas? De que maneira constituir a relação de parceria entre os sujeitos (os alunos e eu) do processo pedagógico a ser desenvolvido em sala de aula?
Como se não bastassem esses questionamentos, as coordenações pedagógicas ou ocupavam-se com as questões administrativas, ou transformavam-se em um difícil trabalho isolado e silencioso. Quase nunca ocorriam oportunidades de discussão e troca de experiências entre o corpo docente e os demais segmentos da comunidade escolar. O resultado dessa vivência foi a profunda dificuldade que encontrei para estabelecer um vínculo com os meus alunos e assim motivá-los a se reconhecerem, dentro da sua existência individual e sociocultural, como seres que assumiriam comigo o papel de protagonistas da sua aprendizagem.
A minha primeira atitude, após esse período, foi a de planejar aulas a partir de textos e situações relacionados com a área de interesse da formação técnica pela qual eles optaram ou com questões que valorizassem o seu cotidiano. A participação produtiva das turmas e a redução do número de alunos faltosos indicavam o sucesso desse planejamento. Entretanto, contrariando os prognósticos, o índice de reprovação mantinha-se a cada bimestre em um patamar incômodo, o que também se refletiu no final do ano letivo.
Infelizmente, só fui entender esse fracasso no ano seguinte quando passou a ser comum a reclamação dos estudantes diante da falta de sintonia entre as práticas de sala de aula e as exigências do mercado de trabalho. Segundo eles, esse problema era a razão da sua falta de perspectiva e, conseqüentemente, do elevado número de reprovação e de evasão escolar. A pertinência da insatisfação desses jovens veio à tona com as profundas reformas do ensino médio prescritas pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação nacional em 1996.
Mesmo assim, desde essa época, ouvir o aluno antes de qualquer ação pedagógica tem sido para mim a condição para que se possa promover, de fato, educação de qualidade. Nos últimos anos, porém, tenho enfrentado várias situações adversas para que se cumpra essa minha condição. O número elevado de alunos, a carga horária desgastante, a falta de coordenadores pedagógicos capacitados para atuarem como facilitadores do processo de ensino-aprendizagem e o desinteresse do Estado pela formação continuada do educador tornaram-se inimigos em potencial de uma escola voltada para a formação de cidadãos plenos e autônomos e fundamentada no trabalho de construção de sentidos na vida dos jovens.
Nesse contexto, minha ação, como a de vários outros educadores da Secretaria, foi sufocada por essas adversidades e, o que é pior, a sala de aula também passou a sufocar: se, por um lado, reconhecia a importância de garantir aos alunos o direito de se posicionarem diante da sua aprendizagem; por outro, sofria com a dificuldade de criar as condições ideais para que essa oportunidade se concretizasse: à maioria deles era negado ou ignorado o exercício desse direito. E a esse impasse eles respondem muito bem, pois, apesar de a população de jovens no Brasil ter aumentado, o número de estudantes no ensino médio tem decaído gradativamente.
Hoje, poder resgatar o aluno que adormeceu em mim, desde os tempos da graduação, tem sido muito gratificante. O reencontro com a leitura de textos acadêmicos e a discussão com os colegas de curso começam a apontar para alguns caminhos de superação dessas dificuldades. Muitas das questões abordadas em nosso curso transformaram-se em ricos momentos de reflexão em minhas aulas. Sempre confiante no diálogo com o aluno, tenho apresentado às minhas turmas alguns dos questionamentos que permeiam as nossas dicussões, tais como a diversidade lingüística e o ensino da norma padrão e o preconceito lingüístico. E assim a cumplicidade entre nós fortaleceu-se: descobrimos, juntos, que igualmente estamos em busca de uma escola pautada no compromisso de oferecer aos jovens habilidades e competências para que assumam o papel, de forma crítica e consciente, como protagonistas da sua própria história. Descobri também que eles se sentem co-autores das aulas quando eu consigo planejar atividades que atendem às necessidades e expectativas apresentadas em nossas discussões.
Na condição de professor-aprendiz, meu desejo é que, a cada nova leitura, a cada novo encontro e cada nova discussão, eu me sinta provocado a despertar o meu papel de sujeito-parceiro dos alunos na construção de conhecimentos. Cegar-me à realidade em que atuo como educador, atitude mais cômoda em face das difíceis condições de trabalho, significa negar a sábia capacidade de ouvir o outro, ensinamento dos meus pais, e recusar-me à compreensão do aluno, na plenitude da sua existência, como um ser que tem o direito de desenvolver as suas potencialidades para cumprir o dever de transformar a sua vida e o seu meio em prol de uma sociedade mais justa.